Afrânio sonhava em ser um jipe.
E o homem se fez carro. Correu estradas, levantou poeiras, transpôs barreiras e atoleiros, o tempo inteiro a viajar. E o carro estava no homem como o homem estava no carro, “como uma coisa estava na outra”. Jipe era a sua marca e assim o chamavam e assim se achava. Em passadas largas mudava a marcha, sinalizava, buzinava, dava passagem, acelerava, ultrapassava, se mostrava máquina em toda sua plenitude. Atitude só dele, pelo que me consta e contam. Nunca dava carona e muito menos aceitava “pois um carro não poderia ir dentro do outro”, explicava. Chegando às cidades obedecia aos sinais do trânsito e quando estacionava simbolizava esse procedimento deixando no local do estacionamento uma caixa de papelão que lhe servia de bagageiro. Carro estacionado saía de dentro dele o homem que então conversava com as pessoas, em especial com outros motoristas, tomava informações, itinerários a seguir. Diversas vezes a cena se repetiu no ponto de táxi da Praça Rui Barbosa, em Ipiaú e outras cidades da região. Não demorava muito e novamente o homem voltava a ser carro, arrancava estrada afora.
Personalidade folclórica intermunicipal, Jipe transitava nas regiões sul e sudoeste da Bahia, entre Itabuna e Jequié. Sendo um carro dentro do homem só admitia a mecânica automobilística. Se equipava a rigor e não aceitava contrariações. -Não dizia que andava, mas sim que dirigia; não parava, estacionava; não tinha dentes, mas velas; não possuía olhos, mas faróis; não usava sapatos, mas pneus, e as meias eram as câmaras de ar. Ao beber água dizia que estava abastecendo o motor e se precisasse ir ao sanitário fazia analogia referindo-se ao cano de descarga. E como todo o carro, por vezes precisava “fazer a troca de óleo....! , narra a escritora Adriana Dantas,em seu livro “Itabuna História e Estórias “. Coube a ela o mais profundo mergulho na história desse extraordinário personagem. Adriana conta que Jipe nasceu em Amargosa e foi batizado com o nome de Afrânio Batista de Queiroz, o qual desde menino era fascinado por automóvel.
"Na porta de sua casa, passava horas admirando os carros que cruzavam as estreitas ruas, podendo diferencia-los ao mais leve ronco do motor”. Alguns desses modelos ele reproduzia em miniaturas feitas com latas e nelas projetava suas fantasias”. Viajava... Dentro dos sonhos iam os carros. ”O carrinho de lata e o menino Afrânio: heróis das próprias aventuras. A brincadeira infantil, no entanto, foi virando obsessão. Afrânio crescia com a ideia fixa de ter o próprio automóvel. O pai, um simples alfaiate, sabia que não tinha condições de realizar o sonho de Afrânio, mas para se livrar dos insistentes pedidos prometeu que se o filho concluísse o curso primário ganharia o seu objeto de desejo. Afrânio meteu a cara nos livros. Antes de chegar ao objetivo traçado, a sua mãe morreu. Dois anos depois foi a vez do pai. Órfão aos dez anos de idade o garoto foi morar com uma tia, permanecendo com ela durante sete anos. Quando sua tia morreu Afrânio mudou-se pra Jequié. Trabalhou num hotel, onde sofreu um acidente, batendo fortemente a cabeça. “Ele mesmo atribuía a isso o seu desequilíbrio mental” .